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sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Baú de Presidentes

Candidato Jânio Quadros em visita a Cuba (1960)






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  • Baú de Presidentes



24/09/2013 às 15:13 \ Baú de Presidentes


Publicado na edição especial de VEJA 45 anos que está nas bancas


AUGUSTO NUNES

“Presidência é destino”, dizia Tancredo Neves a quem imaginava existir alguma rota segura para o coração do poder. Mas o destino dá preferência a quem lhe facilita o trabalho, usando com sabedoria o livre-arbítrio, ensina a edição especial de VEJA datada de 16 de janeiro de 1985 mas distribuída no dia 12 — 72 horas antes da vitória do candidato da oposição no Colégio Eleitoral. Nela se reconstitui em nove capítulos, que somam 33 páginas, a caminhada que depositou o governador de Minas Gerais ao pé da rampa do Palácio do Planalto, bruscamente interditada por sua morte. Parece um trepidante filme de ação com muitos momentos de suspense. O elenco é da melhor qualidade, mas nenhum dos atores ofusca o protagonista: um septuagenário calvo, franzino e introspectivo que, desprovido de superpoderes, recorre à astúcia para contornar as sucessivas pedras no caminho.



A mais extensa reportagem política publicada por VEJA provou que, naquele Brasil surreal da primeira metade dos anos 80, que já não era uma ditadura e ainda não se tornara uma democracia, só um Tancredo de Almeida Neves conseguiria materializar a façanha resumida nas seguintes linhas: “Nesta terça-feira, o mineiro Tancredo Neves, 74 anos, será eleito presidente da República pelos 686 integrantes do Colégio Eleitoral. (…) Pela primeira vez em 21 anos, um civil ocupará a chefia do governo brasileiro”. Só um Tancredo conseguiria avançar na direção do Planalto, sem tropeços nem tombos, percorrendo trilhas atulhadas de militares sensatos e generais incapazes de enxergar o que ocorria a um palmo do quepe, políticos sagazes e bisonhos caçadores de votos, mentes brilhantes e perfeitas cavalgaduras, homens de bem e trapaceiros incuráveis. só um Tancredo poderia ter sobrevivido a um ano singularíssimo como 1984.

Entre janeiro, “quando as primeiras multidões começaram a rodear os palanques de onde se pedia a volta do sufrágio universal”, e dezembro, quando a oposição já se preparava “para se transformar em governo através do sistema de eleição que amaldiçoara”, o conciliador extraordinariamente astucioso fez sempre a escolha certa na hora da encruzilhada. Porque “não se tiram os sapatos antes de chegar ao rio”, esperou passar a campanha das Diretas Já, esperou que as rachaduras no PDS governista se escancarassem, esperou que os líderes do PMDB induzissem Ulysses Guimarães a desistir do sonho presidencial, esperou que o partido inteiro se convencesse de que a solução estava no palácio das Mangabeiras. Só no fim de junho aceitou candidatar-se à sucessão de João Figueiredo, com o apoio da oposição e de um bloco de ex-governistas suficientemente numeroso para garantir um duelo eleitoral de verdade.

Na margem do rio, o candidato em campanha tratou de mostrar que “ninguém vai ao rubicão para pescar”. Escolheu como candidato a vice o senador José Sarney, que renunciara à presidência do PDS. E, como “a escolha do adversário quase sempre é mais importante que a escolha de aliados”, escolheu Paulo Maluf para o duelo derradeiro. Especialista em métodos eleitorais heterodoxos, o ex-governador paulista se julgava “imbatível” em disputas indiretas. “Ele nunca enfrentou profissionais”, avisou Tancredo. O candidato do PMDB sempre confiou na previsão feita no fim de 1982 pelo senador Jorge Bornhausen, durante uma conversa com José Roberto Guzzo, diretor de redação de VEJA, e Elio Gaspari, diretor adjunto: “Muita gente dentro do partido não vai querer se associar ao repúdio que o Maluf gera. O PDS racha”, diz Bornhausen na página 33 da edição especial. (A pedido do senador, foram omitidas as razões do repúdio, quase todas vinculadas ao Código Penal.) Entre setembro e novembro de 1984, enfim, Tancredo definiu os atalhos que desmataria para livrar-se da assombração recorrente na política brasileira: o golpe militar tramado para prorrogar o mandato de Figueiredo.

Ao lado de Etevaldo Dias, chefe da sucursal de Brasília, e dos repórteres Guilherme Costa Manso e Henrique José Alves, participei do levantamento jornalístico iniciado em 15 de novembro de 1984 e encerrado cinquenta dias, 54 entrevistas e 150 horas de conversa depois. Só informações confirmadas por mais de uma fonte se juntaram às colhidas paralelamente por Guzzo e por Gaspari (que, entre outros espantos, exumou o esqueleto golpista que acabara de ser sepultado longe dos olhos do país). Algumas revelações foram embargadas pelos informantes para poupar de constrangimentos antigos parceiros. No encontro com o ministro Mário Andreazza, por exemplo, Tancredo e Antonio Carlos Magalhães não se limitaram a marcar uma conversa a dois quando o anfitrião, derrotado por Maluf na convenção do PDS, foi ao banheiro. “Isto não é coisa para amadores”, murmurou ACM. “Melhor tratar disso sem ele”, concordou Tancredo. Poucas e irrelevantes, tais omissões não fizeram falta à procissão de segredos revelados, ilustrada por fotos e charges em preto e branco. Destacadas pela dupla moldura, rimavam com um brasil que havia tempos oscilava entre a sombra e a claridade.

A reportagem sobre a sucessão de 1985 é muito mais que uma fonte de consulta para historiadores. É a história definitiva em 33 páginas de revista.





23/07/2012 às 19:03 \ Baú de Presidentes


PUBLICADO NA EDIÇÃO DE VEJA DESTA SEMANA


“Esses, pelo menos, não saíram daqui dizendo as coisas diferentemente do que conversamos”, comentou com um assessor o general João Baptista de Oliveira Figueiredo, chefe do Serviço Nacional de Informações do governo Ernesto Geisel, no fim da tarde de 31 de janeiro de 1978. “Esses” eram Guilherme Figueiredo e Saïd Farhat. E “as coisas que saíram dizendo” foram as respostas dadas pela dupla às perguntas dos jornalistas interessados em saber o que haviam conversado o militar já escolhido para encerrar o ciclo dos generais iniciado em 1964, o escritor e teatrólogo que acumulava o posto de irmão mais velho do futuro presidente e o risonho acreano que suspendera as atividades de empresário e jornalista para dirigir a Embratur.

O resgate do episódio é um dos momentos mais saborosos e reveladores de Tempo de Gangorra (Editora TagEtLine;472 páginas;45 reais), em que Saïd Farhat, como informa o subtítulo, apresenta “uma visão do processo político-militar no Brasil de 1978 a 1980″. O confronto entre o que ouviram os jornalistas e o que escutaram as paredes do gabinete no 4° andar do Palácio do Planalto sugere que, se gostou da lealdade dos visitantes, Figueiredo gostou mais ainda de como as coisas foram ditas. E apreciou, sobretudo, o que os visitantes deixaram de dizer.


A imprensa ficou sem saber, por exemplo, que Guilherme, então funcionário da Embratur, só invocou a necessidade de tratar de questões ligados ao turismo para conseguir agendar a audiência de 15 minutos (que se transformariam em quase 70) em que apresentou Farhat ao irmão. Eles combinaram que tentariam, com a exposição de ideias e conceitos inseparáveis do liberalismo clássico, ajudar a pavimentar o caminho da abertura política que seria percorrido pelo quinto (e último) presidente do regime militar. A conversa a três invadiu sem cautelas assuntos perigosos demais para frequentar sem disfarces entrevistas coletivas.

Farhat confirmou, por exemplo, que havia sugerido ao general alguns retoques na imagem. Mas omitiu o comentário de Figueiredo depois de aconselhado a abandonar as meias verdes que terminavam no meio da canela: “Qualquer dia, vocês vão querer que eu ande por aí de collant”. No noticiário do dia seguinte, graças à habilidade de um diplomata vocacional, clarins soaram como flautas, bumbo virou marimba e a batucada ficou parecida com um minueto. Reinterpretado por Farhat, Figueiredo pareceu bem melhor que na partitura original.

AS AMEAÇAS DOS LIBERTICIDAS
O futuro presidente encontrara seu mais perfeito tradutor, mas Farhat soube disso só no segundo encontro, em 8 de junho de 1978, quando foi convidado a juntar-se à equipe do candidato. Primeiro como “assessor polivalente”, depois como porta-voz do presidente eleito, enfim como ministro da Comunicação Social, Farhat conviveu intensamente, durante dois anos e meio, com o “o homem que cumpriu o juramento de fazer deste país uma democracia”.

“A devolução do poder aos civis ocorreu graças à teimosia de Figueiredo”, garante. A declarada simpatia pelo personagem às vezes induz o autor a enxergar no desbocado oficial da Cavalaria um audaz cavaleiro andante. O olhar é amistoso, mas sempre honesto. O livro comprova que só um turrão incurável poderia completar o trabalho de desmonte iniciado por Geisel, outro teimoso de nascença.

Os dois enfrentaram zonas de turbulência forjadas pela involuntária parceria entre ultraconservadores fardados incapazes de admitir a agonia do regime e oposicionistas sem paciência para avaliar o tamanho do perigo a um palmo do nariz. A anistia de 1979, por exemplo, descontentou a esquerda e açulou o ânimo beligerante da linha dura. E, à exceção de Tancredo Neves, revela Farhat, ninguém aceitou apertar a “mão estendida” por Figueiredo num dos primeiros discursos como herdeiro do trono.

Pena que Farhat não tenha detalhado as ameaças anônimas de que foi vítima, nem identificado claramente os liberticidas que seguiram em ação até a restauração da democracia. Mas os fatos que narra confirmam que, efetivamente, ele “viu o bastante para perceber o quanto estivemos arriscados, mais de uma vez, a tudo perder”. Farhat diz que lhe coube “verbalizar a vocação democrática do presidente e, sempre que encontrava caminho aberto, aprofundar razões, reduzir a escrito seu pensamento político, muitas vezes inexpressão”.

VIAGEM PARA LONGE DAS TREVAS
Fez muito mais do que isso. E foi muito além da repaginação que trocou João Baptista de Oliveira Figueiredo por João Figueiredo, demitiu os pesadíssimos óculos escuros e, claro, mudou tanto a cor quanto o comprimento das meias. Graças à insistência de Farhat, o oficial do Exército que chefiara em silêncio o Gabinete Militar de Emílio Medici e o SNI de Ernesto Geisel começou a conversar com jornalistas ─ e o país descobriu que o general caladão camuflava um presidente que falava até demais.

Recorrendo a complicadas acrobacias semânticas, Farhat frequentemente teve de minimizar, traduzir ou revogar declarações que consolidaram o estilo de alguém que se definia como “rude e franco”. Não foi fácil explicar por que o presidente preferia cheiro de cavalo a cheiro de povo. Ou por que daria um tiro na cabeça se tivesse de sobreviver ganhando o salário mínimo. Ou, ainda, por que Figueiredo, depois de prometer a ressurreição da democracia num épico pronunciamento redigido por Farhat, brindou com a advertência famosa o jornalista que lhe perguntara o que faria se alguém se opusesse ao que havia prometido: “Eu prendo e arrebento”.

Somados os governos aos quais serviu e o que chefiou, ninguém ficou mais tempo no Palácio do Planalto do que Figueiredo. Nunca foi feliz. Aceitou a contragosto a indicação para a presidência, que qualificou sinceramente de “missão irrecusável”. Para não repassar a faixa presidencial a José Sarney, que considerava “um traidor”, deixou o palácio pela porta dos fundos. Longe do poder, enfurnou-se num apartamento no Rio de onde saía apenas para os fins de semana no sítio em Petrópolis ou para caminhadas solitárias no calçadão do Leblon.

Quando percebia que alguém o reconhecera, evitava a interceptação com o mesmo drible: “Sou parecido com quem você está pensando, mas não sou ele”. Até morrer em 1999, perseguiu o desejo manifestado na entrevista concedida a Alexandre Garcia semanas antes de encerrar o mandato: “Quero que me esqueçam”. Saïd Farhat preferiu esquecer o pedido, ouvir o apelo da história e lembrar o presidente que conheceu. O retrato produzido pelo livro ajuda a iluminar a última etapa da viagem para longe das trevas.







22/05/2012 às 15:24 \ Baú de Presidentes


PUBLICADO NA EDIÇÃO DE VEJA DESTA SEMANA

“Gosto mais de ser interpretado do que de me explicar”, informa uma anotação no diário que reúne milhares de frases manuscritas por Getúlio Vargas entre 1930 e 1942. E os autores dos livros sobre Getúlio sempre preferiram a interpretação à cansativa busca de informações que ajudassem a decifrar a esfinge, berra a imensidão de obras inspiradas no maior personagem do Brasil do século XX. A fusão do silêncio e da preguiça confinou Getulio, por quase sessenta anos, em palavrórios deformados pela veneração, pelo afeto, por rancores, pela miopia ou pela vassalagem. Só agora o homem que transformou o tempo em cúmplice foi resgatado do universo imaginário por uma biografia genuína. Getúlio ─ Dos Anos de Formação à Conquista do Poder (Companhia das Letras; 629 páginas; 52,50 reais) conta o caso como o caso foi. Até que enfim.

O primeiro volume da trilogia concebida pelo cearense Lira Neto (autor também de biografias da cantora Maysa e do Padre Cicero) descreve a trajetória da lenda entre o outono de 1882, quando chegou ao mundo, e a primavera de 1930, quando chegou ao poder. (O segundo volume tratará do período que vai de 1930 e 1945 e o ultimo se estenderá até a morte em 1954.) Em dois anos e meio de pesquisas, que incluíram consultas a fontes primárias e incursões por estantes ainda indevassadas, Lira Neto juntou tantas informações relevantes que não sobrou espaço para análises acadêmicas e especulações sem serventia. Melhor para os leitores.

Escritor talentoso, Lira Neto enfileira episódios eletrizantes que atormentaram uma república ainda na infância e enfraquecida pelo parto prematuro. A narrativa lembra o roteiro de um filme de ação que saiu da tela para provar que a realidade pode ser mais turbulenta e surpreendente que qualquer história inventada. Getúlio precisou remover, contornar ou implodir formidáveis pedras no caminho para chegar ao Palácio do Catete, onde permaneceria ate 1945 e voltaria a morar como presidente eleito de 1950 a 1954. Entre uma eleição decidida nas urnas e outra resolvida a bala, o conciliador vocacional teve de sobreviver a mais uma guerra civil gaúcha, a duelos com correligionários ciumentos ou adversários brutais, além dos sucessivos levantes promovidos por tenentes rebelados desde a primeira noite no quartel, que começaram com o hino ao absurdo composto pelos 18 do Forte e desembocaram na Coluna Prestes.

Pois ainda melhor que a história é o elenco, que soma os melhores e mais brilhantes atores de duas gerações admiráveis. Uma composta de veteranos como o gaúcho Borges de Medeiros, o mineiro Antônio Carlos de Andrada ou o fluminense Washington Luís, começava a sair de cena depois de fundar a República. Outra, que aposentaria a República precocemente envelhecida, juntava jovens como o sergipano Siqueira Campos, o cearense Juarez Távora ou os gaúchos Oswaldo Aranha, João Neves da Fontoura, Batista Lusardo, Luís Carlos Prestes e Flores da Cunha.

Até que a vitória em 1930 o transformasse em estrela incontrastável, Getulio teve de caçar espaços na ribalta atulhada de protagonistas ou coadjuvantes que encarnavam personagens secundários com a aplicação de candidatos ao papel principal. Getúlio, por exemplo, garantiu a vaga no grupo de elite ao encarnar o mais leal dos ministros de Washington Luís e, em seguida, o mais obediente discípulo de Borges de Medeiros. Washington Luís só acreditou na deserção do aliado quando Getúlio aceitou enfrentar como candidato oposicionista o sucessor escolhido pelo presidente, Júlio Prestes. E o caudilho que governou o Rio Grande do Sul por 25 anos resolveu transformar em herdeiro aquele filho do amigo Manuel Vargas, general dos chimangos de São Borja.

O maior politico do século nasceu quando o subordinado que sabia obedecer começou a mandar. Alojado no Palácio Piratini em 1928, mostrou em poucos meses que, além de provido das qualidades exibidas pelos parceiros, tinha virtudes que faltavam aos eventuais concorrentes. Culto como Washington Luis, sedutor como Oswaldo Aranha, corajoso como Neves da Fontoura, matreiro como Antônio Carlos de Andrada, Getúlio aprendeu a adivinhar a mudança dos ventos e esperar a hora certa. Proibiu-se de cultivar ódios, ressentimentos ou mesmo antipatias ao decidir que, se ninguém e tão amigo que não possa virar inimigo, também não existem inimigos que não possam ser convertidos em amigos.

Lira Neto demonstra que o líder nascido e criado num mundo dividido em metades incompatíveis superou o mais paciente e habilidoso dos negociadores mineiros na arte da conciliação. Quatro anos depois de trocar tiros com os maragatos de Assis Brasil, apareceu no Piratini trocando amabilidades com o chefe do exercito inimigo. A reconciliação inverossímil permitiu que em 1930, pela primeira vez em 100 anos, os disparos dos combatentes gaúchos não reduzissem a população do Rio Grande do Sul. A revolução comandada por um devoto do convívio dos contrários, coerentemente, foi encerrada pela batalha que não houve em Itararé.

Ainda incompleto, o retrato do mito já permite a contemplação de um estadista diplomado com louvor. Num país que confunde teimosia com coerência, Getulio foi sempre contemporâneo do mundo ao redor. Positivista de berço, transformou os cristãos no alvo preferencial do discurso do orador da turma da faculdade de direito. Militante do Partido Republicano, endossou os princípios autoritários de Júlio de Castilhos. Durante a ascensão do fascismo na Itália, flertou com as ideias recitadas por Benito Mussolini. Forjado no Brasil rural, apressaria a gestação do Brasil industrializado. Metamorfose nem sempre é outro nome do oportunismo.

Passados 100 anos, o confronto entre os tempos de Getulio e a era Lula informa que no palco sensivelmente modernizado se movem atores de quinta categoria. A plateia não sofreu mudanças notáveis. Antes como agora, eleitores desinformados não conseguem interessar-se por tramas que vão desenhando o futuro da nação. Os netos dos que viam em Getulio o “pai dos pobres” agora enxergam em Lula o “exterminador da fome” e aplaudem as proezas imaginárias da superexecutiva Dilma Rousseff. O que mudou dramaticamente ─ para pior ─ foi o elenco.

As luminosas singularidades que contracenaram, como aliados ou adversários, contracenaram com o presidente suicida foram substituídos por canastrões sem cura e amadores bisonhos. De longe e afundado na abulia, o povo continua validando decisões aprovadas nas coxias. Pena que Oswaldo Aranha não tenha sobrevivido à virada do século. Ele achava que o Brasil em que viveu era “um deserto de homens e de ideias”. Ao ouvir Lula berrando num palanque que é melhor que Getulio Vargas, descobriria que foi traído pela impaciência. Deveria ter esperado cinquenta anos para emitir o diagnóstico.





12/12/2011 às 15:50 \ Baú de Presidentes


PUBLICADO NA EDIÇÃO DE VEJA DESTA SEMANA


Augusto Nunes

Desde que a carranca de Jânio Quadros substituiu o sorriso de Juscelino Kubitschek em 1961, o gabinete presidencial já hospedou napoleões de hospício, generais de exército da salvação, perfeitas cavalgaduras, messias de gafieira, gatunos patológicos, vigaristas provincianos e outros exotismos da fauna brasileira. A rotina da anormalidade ─ que seria retomada por Lula, um ex-operário metalúrgico que acha leitura pior que exercício em esteira, e mantida por Dilma Rousseff, primeira mulher a exercer o cargo (e provavelmente a primeira figura a governar um país sem conseguir expressar-se de modo inteligível) ─ só foi interrompida entre 1° de janeiro de 1995 e 31 de dezembro de 2002, quando o Palácio do Planalto abrigou Fernando Henrique Cardoso. A soma e o resto ─ um olhar sobre a vida aos 80 anos (Civilização Brasileira; 195 páginas; 29,90 reais) confirma que foi FHC o ponto fora da curva. Lula e Dilma são duas formidáveis singularidades, mas parecem à vontade na galeria de retratos que os tornou vizinhos de parede de Jânio, João Goulart, Emilio Medici, João Figueiredo, José Sarney, Fernando Collor ou Itamar Franco. Todos executam harmoniosamente a partitura da ópera do absurdo. O acorde dissonante é Fernando Henrique, constata quem ouve as mais de 10 horas de lembranças, reflexões e desabafos reunidas no livro organizado por Miguel Darcy de Oliveira.

Eleitos pelo voto popular ou impostos pelo regime militar, quase todos os ex-presidentes têm tudo a ver com o Brasil dos 14 milhões de analfabetos, dos 50 milhões que não compreendem o que acabaram de ler nem conseguem somar dois mais dois, da imensidão de miseráveis embrutecidos pela ignorância. Tal paisagem ajuda a entender por que tantos brasileiros se dobraram a populistas sedutores ou foram dobrados por autoritários fardados. E torna especialmente intrigante a passagem pela Presidência de um intelectual brilhante, exemplarmente democrata, que escreveu muitos livros e fala sem espancar a língua portuguesa. A leitura de A soma e o resto explica alguma coisa, mas acentua a suspeita de que Fernando Henrique tinha tudo para não ser presidente do Brasil da virada do século.

“Este talvez seja o livro mais espontâneo que já publiquei”, avisa FHC. É mesmo: a transcrição quase literal das falas resultou numa obra sem parentesco formal com a escrita sofisticada (e eventualmente impenetrável) do sociólogo mundialmente respeitado. Tal opção cobrou seu preço em redundâncias, raciocínios que pedem mais espaço e histórias interrompidas. Esses pecados veniais são amplamente compensados por revelações que só ocorrem em diálogos sem gravata. Avesso a derramamentos e confidências, FHC nunca foi tão longe nas viagens íntimas, sobretudo as que o levam a reencontrar os pais e os avós. Aos 80 anos, completados em 18 de junho, ele enfim se animou a esboçar o retrato de um futuro presidente quando menino. Acabou tornando bem mais nítidos os contornos do adulto. “Sou cartesiano, mas com pitadas de candomblé”, informa. “Acasos, acidentes, escolhas, capacidade para assumir riscos… Os pontos de inflexão na minha trajetória são um misto de tudo isso”.

A frase se ampara na trajetória do professor universitário que disputou a primeira eleição aos 48 anos, virou suplente de senador, substituiu o titular em 1982, perdeu a prefeitura de São Paulo para Jânio Quadros em 1985, conseguiu outro mandato no Senado um ano mais tarde e já se conformara com a ideia de tentar uma vaga na Câmara dos Deputados, em 1994, quando o presidente Itamar Franco decidiu que seu chanceler deveria ser ministro da Fazenda. Os acasos e acidentes o colocaram frente a frente com a inflação de três dígitos. Coisas do candomblé. E então o cartesiano entrou em ação. Escolheu uma equipe de economistas excepcionais, comandou a implantação do Plano Real, rebaixou a inflação a porcentagens europeias e virou presidente. Por oito anos.

“É a curiosidade que me move”, diz. “O sentido que dei à minha vida foi tentar perceber o que vem de novo por aí”. Essa curiosidade permanente o levaria a inventar, de volta à planície, a versão brasileira do ex-presidente surgida nos Estados Unidos em 1951, quando a 22ª emenda estabeleceu o limite de dois mandatos. Nesta primavera, por exemplo, José Sarney e Fernando Collor agonizam no Senado e Lula escolhe candidatos a prefeito. Fernando Henrique se reúne com os Elders, grupo de ex-governantes fundado por Nelson Mandela, protagoniza um documentário sobre o problema das drogas, busca soluções para o Oriente Médio, escreve livros e coleciona afagos até da presidente Dilma Rousseff. No Brasil, quem conheceu o coração do poder não consegue respirar longe das urnas. FHC deixou a política miúda para, sem sair da vida, entrar na história.





31/10/2011 às 15:01 \ Baú de Presidentes


Nas cenas finais de Tancredo, a Travessia, quem conhece razoavelmente o personagem acha que ficou faltando alguma coisa. Tal sensação poderia ser dissolvida, ou pelo menos abrandada, por uma tarja que, sublinhando as comoventes imagens de abertura, exibisse a advertência necessária: Tancredo Neves não cabe em 105 minutos. Essa é a duração do documentário que estreou nesta quinta-feira nas salas de cinema. Enquanto acompanha passo a passo a caminhada de um PhD em política que viveu como protagonista os episódios mais dramáticos ocorridos entre 1954 e 1985, o diretor Sílvio Tendler procura capturar-lhe a essência do pensamento e as características que forjaram o estilo incomparável. É muito assunto para pouco mais de uma hora e meia.

E é muita história para uma vida só. Ministro da Justiça em agosto de 1954, Tancredo primeiro usou o talento de conciliador para tentar conter a cólera dos inimigos de Getúlio Vargas. Na última reunião do ministério, mostrou a valentia que nunca lhe faltou ao defender a resistência armada aos militares sublevados. Consumada a tragédia, pronunciou um discurso feroz à beira da sepultura do grande suicida. Em 1961, depois da renúncia de Jânio Quadros, o candidato derrotado ao governo de Minas Gerais negociou o acordo entre o vice João Goulart e os generais conservadores que instituiu o parlamentarismo. Emergiu da crise como primeiro-ministro do novo regime.

Em 1964, líder do governo de Jango na Câmara, Tancredo fez o que pôde para evitar o golpe de Estado. Derrotado, ajudou a fundar o MDB oposicionista e seguiu demonstrando que a prudência e a coragem podem e devem andar de mãos dadas. Amigo de Juscelino Kubitschek, cassado em junho, acompanhou o ex-presidente nos humilhantes depoimentos em tribunais militares. Em 1976, voltou ao cemitério de São Borja para despedir-se de Jango, que não pôde ser sepultado com honras de chefe de Estado, com ataques frontais ao governo autoritário.

Em 1983, engajou-se sem ilusões na campanha pela volta das eleições presidenciais diretas, que qualificou de “lírica” não por desconhecer a importânica da mobilização popular, mas por conhecer bem demais o Congresso. Convencido de que a sucessão do general João Figueireido não seria decidida nas urnas, tratou de tecer desde o começo de 1984 as complicadas alianças que, em janeiro do ano seguinte, garantiram a vitória sobre o candidato governista Paulo Maluf no Colégio Eleitoral. Entre o início das operações de bastidores e o triunfo, Tancredo colocou em prática as lições que resumia numa metáfora fluvial: “Não se tira o sapato antes de chegar à margem do rio. Mas não se vai ao Rubicão para pescar”.

Esperou até a 25ª hora para formalizar a candidatura e deixar o governo de Minas. Chegara à margem do rio. E então partiu para a travessia do seu Rubicão — o rio que todo guerreiro tinha de cruzar para lançar-se à conquista de Roma. Conseguiu o apoio de todas as vertentes da oposição, com exceção do PT. (O detentor do monopólio da ética se negou a votar no candidato da nação e expulsou os três deputados que descumpriram a ordem. Lula achou que Tancredo não merecia confiança também por ter como vice um José Sarney. Hoje amigos de infância, Sarney e Lula são reduzidos a uma dupla de pigmeus oportunistas pela grandeza do presidente que poderia ter sido e não foi).

Na etapa seguinte, Tancredo atraiu dois terços do PDS e isolou Maluf. Como se disputasse uma eleição direta, liderou comícios monumentais em várias cidades brasileiras. Já era um campeão de popularidade quando pronunciou o belo discurso da vitória. Surpreendido pela cirurgia inadiável na véspera da posse em 15 de março, agonizou até 21 de abril, quando deixou a vida para entrar no imaginário popular como herói nacional.

Cada uma das tantas versões de Tancredo vale um livro, cada episódio que protagonizou vale um filme. Como foram todos agrupados num único documentário, é inevitável que certos trechos pareçam rasos demais, incompletos ou de difícil compreensão. A memória nacional sairia ganhando se, por exemplo, fossem incorporadas mais informações ao trecho reservado às restrições feitas por chefes militares ao candidato do MDB. Até render-se aos fatos, o presidente Figueiredo vivia recitando a expressão “Tancredo never”. Preocupado com as reações da linha dura, o candidato montou em segredo um plano para reagir a um eventual golpe fardado. O excesso de cautela aconselhou Tancredo a ocultar as dores que prenuciaram o drama. Ele achava que os quartéis não admitiriam a posse do vice José Sarney.

Feitas as ressalvas, convém deixar claro que o que parece pouco aos olhos de cinquentões bem informados é mais que suficiente para permitir a quem tem menos de 30 uma pedagógica viagem, conduzida por Tancredo, pelo turbulento Brasil da segunda metade do século 20. No grande viveiro de desmemoriados vocacionais e amnésicos por conveniência, que a cada 15 anos esquecem o que aconteceu nos 15 anteriores, merece ser saudado com tambores e clarins um documentário que trata a verdade com gentileza e conta o caso como o caso foi.

É irrelevante saber se será anexado aos trunfos eleitorais do senador Aécio Neves. Se fosse neto de um avô assim, Tancredo Neves agiria da mesma forma. E pouco importa constatar que a câmera não esconde a admiração pelo personagem. Esse mineiro de São João del Rei que fez da conciliação política uma forma de arte, esteve sempre do lado certo e só depois de morto subiu a rampa do Palácio do Planalto é, decididamente, um estadista admirável.

Outros documentários completarão o painel esboçado pelo retrato pintado por Tendler ─ e concluído na hora certa. Milhões de brasileiros poderão constatar que, há apenas 25 anos, sobrava gente que debatia ideias, defendia programas e não estava à venda. Os corruptos não chegavam tão facilmente ao ministério. A Era da Mediocridade ainda era só um brilho no olhar guloso de Lula e seus devotos. As imagens mostram um José Sarney constrangido, deslocado, consciente da condição de intruso. Virou presidente graças aos micróbios do Hospital de Base de Brasília e à incompetência dos médicos, que se uniram para castigar o Brasil com a perversidade brilhantemente condensada na frase do jornalista Carlos Brickmann: “Sair de Tancredo para cair em Sarney é, definitivamente, encontrar um túnel no fim da luz”.





05/09/2011 às 16:40 \ Baú de Presidentes


TEXTO PUBLICADO NA EDIÇÃO DE VEJA DESTA SEMANA

Augusto Nunes

Os três únicos brasileiros que assumiram a Presidência depois da República Velha sem ter completado 50 anos não chegaram ao fim do mandato. Jânio Quadros (44), um assombroso fenômeno regional que nunca havia visitado o Palácio do Planalto nem dormira mais que duas noites na nova capital, imaginou que o Distrito Federal fosse São Paulo em miniatura. Rompido com a maioria do Congresso, renunciou no sétimo mês de governo. Fernando Collor (40) imaginou que Brasília fosse uma grande Alagoas. Ampliou o patrimônio sem cautelas, virou as costas ao Legislativo e foi despejado pelo impeachment dois anos e meio depois da posse. A terceira vítima da maldição dos 40 não exibe qualquer semelhança com os companheiros de infortúnio, demonstra o historiador e pesquisador Jorge Ferreira em João Goulart – Uma biografia (Editora Civilização Brasileira; 713 páginas; R$ 69).

Jânio e Collor cediam a impulsos juvenis, tinham muita pressa e nenhuma intimidade com o poder central. Em setembro de 1961, quando substituiu o único chefe de governo que abandonou o emprego voluntariamente, João Goulart tinha apenas 43 anos. Mas também tinha muita paciência, tornara-se um ótimo ouvinte, assimilara a arte da conciliação, pensava demoradamente antes de agir e se movia com desembaraço no Olimpo federal. Veterano de muitas guerras, o gaúcho quarentão compreendeu já no dia da renúncia de Jânio que a mais feroz de todas acabara de começar. E achou que estava pronto para vencê-la.

Como ressalta Jorge Ferreira, Goulart emergiu do anonimato ainda na década de 50, quando o jovem fazendeiro se tornou confidente, depois pupilo predileto e enfim herdeiro de Getúlio Vargas, o ex-ditador desterrado na estância do Itu, no Rio Grande do Sul, desde a implosão do Estado Novo. Para sempre associado ao mito que governou o país por quase 20 anos, e continuou influenciando poderosamente o comportamento do eleitorado por mais 10, Jango elegeu-se deputado estadual, secretário de Estado, deputado federal, ministro do Trabalho, duas vezes vice-presidente da República e presidente do Senado. “João Goulart se formou em Direito e, sobretudo, em política brasileira, pelas mãos de Vargas”, lembra Jorge Ferreira. O aluno aplicadíssimo aprendeu muito. Mas há o que não se aprende em lugar nenhum. Carisma, por exemplo, é marca de nascença. E a centelha que identifica o líder de massas não é uma graça alcançada. É uma escolha do destino

A minuciosa narrativa de Jorge Ferreira permite acompanhar a centímetros de distância a trajetória percorrida por Jango desde a infância em São Borja até a morte na fazenda na Argentina, ao lado de Maria Thereza ─ a mais jovem, bela e injuriada das primeiras-damas. As mais de 700 páginas também escancaram as virtudes e os defeitos de Jango. Embora não oculte a simpatia pelo biografado, o autor não sonega aos leitores os equívocos e escorregões que acabaram por transformar o governo João Goulart no caminho mais curto para a ditadura militar. Incomodado com a “condenação ao esquecimento” que teria sido imposta ao seu personagem pelos historiadores, Ferreira às vezes se entrega à tentação de incluí-lo na rarefeita galeria dos estadistas. Mas o conjunto das informações reunidas no livro se encarrega de corrigir eventuais exageros. Se não foi o arquiteto da república comuno-sindicalista satanizada pelos militares ultraconservadores, nem o burguês que, aos olhos da esquerda primitiva, mascarava com jogadas demagógicas a cumplicidade com o Brasil conservador, Jango tampouco foi uma reedição remoçada de Getúlio Vargas.

Corretamente, Ferreira argumenta que não se pode tratar como um populista sem qualidades o herdeiro indiscutível do maior político brasileiro do século 20. Vale ressalvar, contudo, que o legado incluiu os ódios represados entre agosto de 1954, quando Getúlio se suicidou no penúltimo ano de mandato, e março de 1964, quando os militares tomaram o poder. E não custa registrar as diferenças que separam o mestre do discípulo. Getúlio nasceu para o papel principal. Jango foi sempre um grande coadjuvante. As festejadas performances em papeis secundários, aliás, podem tê-lo desqualificado para encarnar o protagonista. Ministro do Trabalho de Getúlio, por exemplo, ganhou força entre os sindicalistas ao garantir um aumento de 100% no salário mínimo. Em contrapartida, jamais se livraria da suspeita de flertar com comunistas.

Em 25 de agosto de 1961, o almirante Sylvio Heck, ministro da Marinha de Jânio, certamente pensava no ex-ministro do Trabalho ao resumir para Jânio o pensamento das Forças Armadas: “Nós levamos tanto tempo para tirar essa gente do poder. Como é que o senhor vai entregar-lhes novamente o governo? ” ‘Essa gente”, confirmou o tom depreciativo, era a grande seita getulista em geral e, em particular, João Belchior Marques Goulart, promovido a cardeal depois da morte do seu único deus. “Eu tinha certeza que os militares não aceitariam Jango”, contou muitos anos depois. Ninguém podia então adivinhar, no momento da renúncia, que a instituição do regime parlamentarista adiaria por dois anos e meio o desfecho do drama, narrado pormenorizadamente nos capítulos reservados à agonia do regime democrático.

Essas páginas contribuem para transformar João Goulart – Uma biografia em leitura indispensável aos interessados em compreender aqueles tempos crispados ─ e descobrir por que, como a mudança das estações, a queda era inevitável. É compreensível que se tenha consumado sem resistência. Jango nunca olhava as pessoas nos olhos. Desafiado pelas tropas insubordinadas, não quis contemplar o olho do furacão.





25/08/2011 às 19:11 \ Baú de Presidentes


TEXTO PUBLICADO NA EDIÇÃO DE VEJA DESTA SEMANA


Augusto Nunes

Sete anos depois do suicídio de Getúlio Vargas, sete meses depois da posse, o presidente Jânio Quadros precipitou, com sete linhas manuscritas, a sequência de crises que desembocaria, sete anos mais tarde, no Ato Institucional n° 5 – e na instauração da ditadura sem camuflagens. Na manhã de 25 de agosto de 1961, a democracia ainda em sua infância viu-se forçada a renunciar à maturidade, que só seria alcançada caso fossem cumpridos integralmente dois mandatos consecutivos. O Brasil civilizado pareceu mais distante que nunca no dia em que o presidente sumiu.

Abrupto e inesperado, o último ato foi um fecho coerente para a ópera do absurdo composta desde o primeiro dia de governo, quando Jânio foi ameaçado pela maioria oposicionista no Congresso: se ele continuasse a hostilizar o antecessor Juscelino Kubitschek, uma sessão especial da Câmara e do Senado seria convocada para tratar do assunto. Ainda em 1º de fevereiro, o novo presidente revidou com a criação de comissões de sindicância, chefiadas por militares e incumbidas de investigar “focos de corrupção” que dizia ter herdado de JK.

Nos 204 dias seguintes, o Brasil viajou numa montanha-russa monitorada por um homem de 44 anos que obedecia exclusivamente ao instinto. Tangenciando o penhasco com perturbadora frequên­cia, alternando freadas bruscas com arrancadas vertiginosas, ele aumentou o expediente dos servidores públicos, exonerou meio mundo, suspendeu nomeações por um ano, reduziu o orçamento das Forças Armadas e os quadros funcionais de todas as embaixadas, tabelou o preço do arroz e do feijão, condenou a invasão de Cuba financiada pelos Estados Unidos, planejou a anexação da Guiana Francesa, baixou medidas de combate ao monopólio, desvalorizou a moeda, determinou ao Itamaraty que restabelecesse relações diplomáticas com a União Soviética, proibiu maiô em concurso de miss, lança-perfume, briga de galo, corridas de cavalo em dias úteis e veiculação de comerciais no cinema, mobilizou o Exército para reprimir uma greve de estudantes no Recife, brigou com a maioria dos parlamentares aliados, regulamentou a remessa de juros para o exterior, enviou o vice João Goulart à China, condecorou Che Guevara e rompeu com Carlos Lacerda. No 207° dia de governo, renunciou à Presidência.

Insatisfeito com o Congresso, infeliz com a vida numa cidade que odiava, colérico com o discurso em que Carlos Lacerda o acusou de tramar um golpe de gabinete, Jânio pouco dormiu na madrugada de 25 de agosto de 1961. Saiu da cama antes que o sol nascesse disposto a tirar o sono dos demais brasileiros. Depois do café da manhã ao lado da piscina do Palácio da Alvorada, sobressaltou a mulher, Eloá, com outra frase de novela mexicana: “A conspiração está em marcha, mas vergar eu não vergo!”.

Às 6 horas, já no Planalto, chamou a seu gabinete alguns assessores de confiança e, alisando o bigode de dono de botequim, antecipou a manchete da próxima edição de todos os jornais: “Comunico aos senhores que renuncio, hoje, à Presidência da República”. Durante o desfile do Dia do Soldado, convocou os três ministros militares para uma audiência – e para deixá-los atônitos com a notícia. Rejeitou os apelos para ficar com outro palavrório solene que terminava com a identificação do culpado: “Ajustem o novo Brasil às exigências do Brasil novo. Com esse Congresso eu não posso governar”.

SURTO DE SINCERIDADE
Sem pausas, ordenou ao ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, que entregasse ao presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, a carta que redigira no dia 19, depois de condecorar Che Guevara. Na hora do almoço, embarcou rumo à base aérea de Cumbica, para a demorada escala que precedeu a partida para a Europa a bordo de um navio cargueiro. No dia 26, o país, imerso na perplexidade, pareceu afundar na crise provocada pelo veto dos chefes das Forças Armadas à posse do vice João Goulart.

“Ele foi a UDN de porre no governo”, resumiu Afonso Arinos de Mello Franco, ministro das Relações Exteriores. “Faltou alguém trancá-lo no banheiro”, lastimou. Só se fosse para sempre, sabe-se hoje. Algumas horas de cárcere privado só adiariam a tentativa de instituir o presidencialismo autoritário que o deixaria livre para agir. Na carta da renúncia, o signatário informou que deixara com o ministro da Justiça as razões do seu gesto. O segundo texto confiado a Pedroso Horta é um amontoado de queixas difusas, alusões a “forças terríveis”, declarações de amor ao Brasil e juras de apreço ao Povo (com maiúscula). Ele só contou a verdade alguns meses antes de morrer, em 16 de fevereiro de 1992, numa conversa com Jânio John Quadros Mulcahy, o único filho homem de Tutu Quadros.

Em 25 de agosto de 1991, trinta anos depois da renúncia, o paciente internado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, foi acometido por um surto de sinceridade provocado pela curiosidade do neto. “Foi o maior erro que cometi”, lamentou. “Ao renunciar, eu quis pedir um voto de confiança à minha permanência no poder.” Foi para acentuar a sensação de vazio que despachara o vice, João Goulart, para a China. “Jango era uma espécie de Lula, completamente inaceitável para a elite”, comparou. “Imaginei que o povo iria às ruas, seguido dos militares, e que eu seria chamado de volta.”

O intuitivo genial só esqueceu de combinar com os adversários. Auro de Moura Andrade comunicou ao plenário do Congresso que a renúncia era “um ato de vontade unilateral”, e empossou o presidente da Câmara, o deputado Ranieri Mazzilli. Preocupados com o vice que voltava da China, os militares esqueceram o homem que desertara. E o povo só poderia ser mobilizado por um partido janista que o líder jamais deixou nascer. “Fiquei com a faixa presidencial até o dia 26″, contou ao neto. “Deu tudo errado. O país pagou um preço muito alto.” Jango acabaria engolido pelos quartéis. Mas seria expelido três anos mais tarde.

A tentativa de implantação de uma ditadura civil que resultou no advento de uma ditadura militar ortodoxa seria a peça mais vistosa do acervo de singularidades e paradoxos colecionados desde o berço. Jânio João Quadros segundo a certidão de batismo, o filho do médico Gabriel Nogueira Quadros e da dona de casa Leonor Silva Quadros resolveu ainda menino trocar o “João” por um “da Silva” e juntar o mais comum dos sobrenomes ao prenome inspirado em Janus, o deus bifronte. Virou Jânio da Silva Quadros – ou apenas J. Quadros, na assinatura dos bilhetinhos ou de decretos oficiais.

A CAVALGADA DAS VASSOURAS
Nascido em Campo Grande (hoje Mato Grosso do Sul), inventou quando estudante em Curitiba um estranhíssimo sotaque sem parentesco com Mato Grosso, com o Paraná ou com qualquer região. O acento personalíssimo só pode ser encontrado na voz dos imitadores. O estudante de direito da Faculdade do Largo São Francisco já exibia trajes desleixados e cabelos em desalinho, parecia pouco asseado, bebia com muita competência e apreciava frases empoladas. Tinha na cabeça (além de um dicionário alojado em algum desvão do cérebro) ideias vagamente nacionalistas e a certeza de que fora enviado pela Divina Providência para salvar o Brasil.

Em 1947, os alunos do Colégio Dante Alighieri decidiram conseguir uma vaga na Câmara Municipal de São Paulo para o professor de geografia que não fizera sucesso como advogado criminalista e não ingressara na carreira diplomática “por não corresponder aos padrões estéticos”. Foi o começo da impressionante cavalgada das vassouras, anabolizada pelo discurso que celebrava a luta do tostão contra o milhão, prometia varrer a bandalheira, punir os desonestos, enquadrar os ineptos e engaiolar os corruptos – a começar pelo inimigo preferido, Adhemar de Barros, uma espécie de Paulo Maluf sem disfarces.

Em apenas treze anos, Jânio foi deputado estadual, prefeito da capital, governador, deputado federal e presidente da República. Só ficou do começo ao fim no governo de São Paulo. Ao completar o mandato em janeiro de 1959, o líder carismático havia incorporado a imagem de administrador incorruptível. O Brasil fora feliz com JK, um mineiro risonho, generoso, tolerante, afeito ao convívio dos contrários. Mas decidiu em 1960 que o sucessor seria o mato-grossense genioso, instável, ególatra, autoritário.

Como o país, Jânio pagou caro pela renúncia ao mandato conferido por mais de 5,6 milhões de eleitores. Transformado numa caricatura de si próprio, tentou a ressurreição impossível antes e depois da cassação, em 1964. Fracassou em 1962 e em 1982 na tentativa de voltar ao governo paulista, elegeu-se prefeito de São Paulo em 1985. Aos 75 anos, morreu pensando na Presidência. E sem revelar o número da conta no banco suíço.

Cinquenta anos depois da renúncia, o Brasil parece bem menos primitivo, a democracia tem mais consistência e Jânio figura na galeria presidencial como outro ponto fora da curva. Mas tampouco parece suficientemente moderno para considerar-se livre de reprises da farsa. Países exauridos pela corrupção endêmica serão sempre vulneráveis a algum populista que, com um discurso sedutoramente agressivo, prometa varrer a bandalheira.





18/03/2011 às 13:38 \ Baú de Presidentes


PUBLICADO EM 18 DE MARÇO DE 2011

Enquanto espero a conversa com Fidel Castro no salão imenso do Ministério das Relações Exteriores, estou pensando o que pensa todo estrangeiro convidado para uma tremenda boca-livre por conta do governo cubano: se o povo visse isto aqui, o regime comunista não chegaria à sobremesa. Extensa, espessa e sólida como píer inglês, a bancada do bufê suporta uma assombrosa procissão de frutos do mar. Lagostas, camarões, siris e caranguejos de dimensões amazônicas, um tsunami de mariscos e ostras, cardumes de peixes de espantar o velho Santiago. Estamos em dezembro de 1987, mas aquilo parece banquete patrocinado por um Nero de cinema.

Tem até gente gorda. Há seis dias zanzando pelas ruas de Havana, só vi gente magra. O governo jura que ninguém morre de fome, mas nenhum cubano comum come o suficiente para matá-la. Isso é para quem frequenta recepções oficiais. Contemplo uma lagosta abraçada a dois camarões quando me bate a certeza de que todos os gordos da ilha estão aqui. Não passam de dez. Começo a imaginar como é que eles explicam aos magros curiosos aqueles quilos a mais quando vejo o funcionário que escolta o bando de brasileiros me acenando com espalhafato. Chegou o grande momento. Junto-me ao grupo de jornalistas e vamos todos para uma sala com quatro poltronas e dois sofás de bom tamanho. Capturo uma poltrona. Cinco minutos mais tarde, a porta se abre ─ e Fidel finalmente aparece.

Aos 61 anos, há 28 no poder, a figura emoldurada pela soleira traja uma farda verde-oliva bem cortada e parece em ótima forma. Fico de pé e constato que nossos queixos se alinham na mesma altitude. Ele tem, portanto, entre 1m85 e 1m90, incluindo o salto carrapeta do coturno preto. Só alcança 2 metros na imaginação dos devotos. A expressão satisfeita e o olhar confiante informam que o ditador quase sessentão adora o que faz e pretende manter o emprego enquanto viver.

Também ficou mais cauteloso, sorrio ao conferir o cinto paisano: não há qualquer vestígio de coldres e revólveres. Desde o outono de 1960, quando a lenda estava ainda em seu começo, Fidel Castro sabe que não se deixa impunemente uma arma de fogo ao alcance de jornalistas brasileiros.

O CASO DO SUMIÇO DO REVÓLVER
Naquela noite de abril, Fidel chegou com algumas horas de atraso à embaixada do Brasil em Havana. Todos empunhando copos ou garrafas, ali o esperavam o futuro chanceler Vasco Leitão da Cunha, que organizou a recepção, Che Guevara, escalado pelo chefe para distrair os visitantes, o recentíssimo amigo de infância Jânio Quadros, figurões do janismo e jornalistas que cobriam a visita a Cuba do candidato à presidência da República. (O vídeo abaixo mostra a animação da comitiva já na chegada à ilha. Até o exemplarmente sóbrio Afonso Arinos acabara entrando na festa, com um chapéu na cabeça e maracas nas mãos).

No corredor da embaixada, Fidel fez uma derradeira escala no lavabo para deixar sobre a caixa da descarga o cinto com o revólver no coldre que completava o uniforme de guerrilheiro. Entrou na sala de jantar desarmado, falante e feliz. Só deu a conversa por encerrada no meio da madrugada. Um dos últimos a retirar-se, embarcou num jipe pilotado pelo ajudante de ordens e desapareceu na noite. Reapareceu às cinco da manhã para buscar o que esquecera no lavabo. E então descobriu que o cinto não estava mais lá. Nem o coldre. Nem o revólver.

O jornalista Villas-Boas Corrêa, que testemunhou a cena, resumiu num artigo no Jornal do Brasil a reação de Fidel. “Ele perde a calma, insiste na busca. A criadagem é acordada. Ninguém vira ou tinha notícia da pistola que, segundo Fidel, o acompanhava desde Sierra Maestra, uma mascote que era parte da sua vida”. À beira de um ataque de nervos, a vítima suspendeu as buscas e foi tentar dormir.

Mas não se renderia, conta Villas-Boas Corrêa: “Compareceram à embaixada, horas depois, o comandante Raulito Diaz Argueille, chefe do Birô de Investigações, e o capitão Chino Figueiredo, do serviço secreto, reclamando a lista com os nomes de todos os que compareceram à recepção e deixando claro que Fidel exigia a devolução da arma no prazo de 24 horas”. Teria de esperar o dobro.

Passadas 48 horas, o autor da audaciosa gatunagem procurou Leitão da Cunha para propor o acordo: ele devolveria o produto do roubo se o dono não soubesse quem foi. O embaixador cumpriu a promessa e levou o segredo para o túmulo. A História ainda ignora a identidade do jornalista brasileiro que conseguiu o que nem os americanos conseguiram: desarmar Fidel.

Leitão da Cunha só deixou escapar, muitos anos mais tarde, que se surpreendeu com a inscrição na plaqueta de ouro incrustada no cabo do revólver: “Ao herói do povo cubano, a amizade de Anastas Mikoyan”. Aquele parabelum russo, um presente do chanceler da União Soviética, desembarcara na ilha meses antes do incidente noturno. Não fazia a menor ideia de onde ficava a Sierra Maestra.

O passeio por 1960 é interrompido pela voz que anuncia o início de un rato de charla. Um dedinho de prosa com Fidel, como se verá no terceiro e último capítulo, dura pelo menos três horas.







22/02/2011 às 21:34 \ Baú de Presidentes


PUBLICADO EM 22 DE FEVEREIRO DE 2011


Estou há seis dias em Havana fazendo o que faz desde janeiro de 1959 todo jornalista que baixa em Cuba: esperando Fidel Castro aparecer. Também aguardam a aparição mais 11 jornalistas e quase 30 deputados paulistas. Chegamos domingo no avião da VASP que inaugurou a rota São Paulo-Havana. A ideia do governador Orestes Quercia será testada por três meses com um voo por semana. Nesta noite de sexta-feira, dou-me conta de que faltam só 48 horas para a viagem de volta. O homem não deu as caras, mas o funcionário do Ministério das Relações Exteriores que acompanha a comitiva brasileira segue repetindo o que disse ainda na pista do aeroporto: “O Comandante gostou muito da ideia de conversar com vocês. Vai aparecer a qualquer momento”.

Fidel nem sempre aparece, mas gosta mesmo de conversar. Gosta tanto que a fila de espera não cabe na agenda. Como a fila não anda, os enfileirados se distraem mudando de lugar. No primeiro dia, com a circunspeção de quem aguarda a chegada da noiva na porta da igreja, esperei no saguão do Hotel Riviera. Neste sexto dia em Cuba, espero no salão imenso do Ministério das Relações Exteriores. Acabei de chegar com dois jornalistas amigos e estou à procura dos outros brasileiros na multidão de convidados para o coquetel oferecido pelo governo.

Já esperei em lugares mais sossegados. Na terça-feira, por exemplo, fiquei de prontidão em dois restaurantes célebres, La Bodeguita del Medio e La Floridita, caprichando na pose de Ernest Heminguay aos trinta e poucos anos. Em homenagem ao escritor que bebeu todas quando morou por aqui, tracei meia dúzias de mojitos no bar do primeiro e oito papa dobles no bar do segundo. Achei melhor esperar na piscina do hotel quando comecei a ver a miragem de Fidel em dobro.

Na quarta-feira, esperei quatro horas na fila da sorveteria Copellia até chegar ao balcão e pedir o famoso sorvete de limão que tinha acabado minutos antes. Na quinta, de volta ao bar do La Floridita, bateu-me a ideia de esperar Fidel brincando de figurante de filme de época. No fim dos anos 80, a capital cubana não saiu dos 50, informam o casario implorando por pintura e os carrões americanos que sacolejam pelas ruas. O garçom me contou que qualquer um pode ser usado como táxi. É só pagar 1 dólar e dizer o destino. Seja qual for o trajeto e a duração da corrida, o preço não muda. Não acredito, mas não custa conferir. Estendo a mão ao ver um Studebaker verde e o motorista para. O garçom não estava brincando.

Nas três horas seguintes, pela módica quantia de quatro dólares, esperei Fidel no banco do co-piloto de um Oldsmobile vermelho, um Mercury preto, um Chevrolet rabo-de-peixe azul e um Buick de cor indefinida que me devolveu ao hotel. Acordei nesta sexta-feira perguntando a jornalistas e deputados que ano é hoje. Eles respondem dizendo a hora. Pergunto de novo pelo ano. 1987, dezembro, murmuraram dois dos consultados, ambos com expressão intrigada. Só acredito no que ouço porque o espelho informa que já faz tempo que sou maior de idade.

Nesta sexta à noite, só sei que estou no terceiro daiquiri. E me preparo para pedir o quarto quando a frase multiplicada por centenas de vozes flutua sobre o oceano de cabeças: “É ele!”. Ele é Fidel, quem mais poderia ser? O funcionário do governo chega ofegante para avisar que o Comandante vai conversar conosco daqui a duas horas. Esqueço as trapaças do calendário gregoriano, desisto do daiquiri ao lembrar como foi o duelo com Jânio Quadros e começo a pensar nas perguntas presas na garganta há seis dias.

Ou 30 anos, como veremos na continuação desta história.





31/01/2011 às 15:47 \ Baú de Presidentes


Publicado em 1º de junho de 2009

  • Da esquerda para a direita: Paulo Maluf, Elio Gaspari, Cesar Civita, Victor Civita, João Figueiredo e o colunista


Capítulo 2

O EXTERMINADOR DE COELHOS

─ O que eles querem é me pegar de calção e a Dulce de maiô ─ está dizendo João Baptista de Oliveira Figueiredo, à vontade no sofá da sala imensa, quando o empresário Georges Gazale, dono da mansão em que o ex-presidente da República se hospedava havia cinco dias, apresenta os dois recém-chegados ao homem de calça social cinza claro, camisa esporte cinza claro e cardigan cinza claro. (Os sapatos e as meias eram pretos).

─ Esses moços são jornalistas ─ previne Gazale. ─ Mas jornalistas amigos, gente de confiança ─ ressalva antes que o general da cavalaria sempre cismado com a imprensa se levante do sofá já prendendo e arrebentando.

O outro moço é meu amigo Carlos Maranhão, editor da Playboy , também hasteado a um metro da figura que acaba de erguer-se. Figueiredo está uns dez quilos mais gordo e milhares de volts menos tenso, constato. A perna esquerda, que balança feito pêndulo doido quanto fica nervoso, permanece tranquilizadoramente imóvel. E então recomeço o diálogo que, sete anos antes, não havia passado de cinco segundos, duas frases, cinco palavras e uma vírgula.

─ Boa noite, presidente.

─ Boa noite, como vai? ─ sorri Figueiredo, que cumprimenta Maranhão e se senta para retomar a história que está contando a meia dúzia de convidados que chegaram mais cedo para o jantar oferecido por Gazale em homenagem ao hóspede ilustre.

Estou no lucro, contabilizo às oito da noite de 12 de março de 1987. A conversa já chegara a dez segundos, sete palavras, duas vírgulas e um ponto de interrogação. Fora o sorriso, que prometia continuação. Devo essa ao Maranhão, registro. Estou lá graças àquele moço.

─ O Gazale vai dar um jantar para o Figueiredo na quinta-feira e me convidou ─ Maranhão me surpreendera no almoço de segunda, ainda na fase dos aperitivos. ─ Perguntei se podia te levar e ele disse que sim.

Grande Maranhão. Grande notícia. Só não paguei o almoço porque o dono do Au Liban era o próprio Gazale, que não cobrava nada de ninguém que conhecesse há mais de duas horas. A generosidade do proprietário foi um dois motivos que transformaram o Au Liban no nosso restaurante predileto. O outro foi a boa qualidade da comida árabe. Estou pensando na cozinha do lugar quando um garçon se aproxima do grupo, ao qual me juntara sem pedir licença, que ouve o caso do calção e do maiô. Esses salgadinhos são de lá, adivinho ao mesmo tempo em que descubro quem eram as figuras misteriosas que o ex-presidente chamara de “eles” na primeira frase que ouvi. “Eles” eram fotógrafos.

─ Sempre tem um cara em cima de algum morrinho, com aquelas máquinas enormes ─ esclarece a continuação da narrativa do confronto entre a turma da teleobjetiva e o homem de 69 anos que, longe dos quartéis e do poder, buscava sossego no seu sítio em Nogueira, perto de Petrópolis, na Serra Fluminense.

O duelo, silencioso e recorrente, começava sempre às cinco da manhã. Assim que aparecia na porta da casa o ermitão com pernas arqueadas de cowboy, barriga saliente, cabelos lisos, testa ampla, cara amarrada e olhar desconfiado, uma câmera brilhava em alguma elevação a 100 metros de distância. Imediatamente, Figueiredo apoiava o pulso direito no antebraço esquerdo, dava uma acintosa banana para o espião e, sem desfazer o gesto, marchava em direção à piscina. O bombardeio de cliques e flashes se intensificava nos fins de semana em que Dulce Figueiredo aparecia no sítio, vinda do apartamento no Rio em que passava todos os dias úteis.

Figueiredo confessa que gosta mesmo é de ficar sozinho. Primeiro, porque pode passar o dia inteiro só de calção. Depois, porque fica livre de visitas ou telefonemas e liberado para dedicar-se a seus coelhos. Vistoria a criação todas as manhãs, depois das braçadas na piscina.

─ No momento tenho cem ─ informa. ─ Gosto muito de coelho. Gosto tanto que já-já reduzo a turma. De cada dois, eu como um.

Não é pouca coisa, mas o ex-presidente pretende melhorar o desempenho. Precisa manejar com mais aplicação o garfo e a faca, e aumentar o ritmo do extermínio, para acompanhar a velocidade espantosa com que aqueles bichos se multiplicavam. Gazale, que voltara à roda dois minutos antes, acha que o amigo começou a enveredar por areias movediças e reitera o alerta.

─ Eu disse que esses moços são jornalistas, presidente?

Figueiredo faz que sim com a cabeça, engata uma segunda e pisa no acelerador.

─ Só achava chato quando vinha aquele bando de jornalistas atacando a gente com microfones nas mãos ─ abre o sorriso. ─ Sempre com uma repórter bonitinha na frente.

Faz uma pausa, passa em revista com os olhos os dois moços da imprensa e lembra que se dera bem com os repórteres que frequentavam diariamente a sala de imprensa do Palácio do Planalto. Todos o tratavam com muita cortesia, eram bastante gentis. Feito o registro, comanda a carga da cavalaria ligeira:

─ É o que sempre digo à Dulce: jornalistas e picaretas são muito educados.

Finjo que não ouvi direito para continuar ouvindo Figueiredo. Ele tinha muito a dizer.









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Depois de "Qüênia", qual será a próxima parada do trema reinventado por Dilma Rousseff?

Dom Qüixote
Eu não qüero
Ganhei a enqüete
Meu qüerido
Montei um esqüema



Desde 23 de novembro de 2012 Lula ainda não disse nada sobre o caso Rose, que já completou
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"Esses moleques da Globoprecisam de umas chicotadas do Congresso Nacional e da cidadania".Roberto Requião, senador da base alugada, setor PMDB, guichê do Paraná, indignado com uma reportagem do jornal O Globo que mostra como a recente decisão do STF sobre os embargos infringentes pode beneficiar 84 políticos enrolados com a Justiça, inclusive o declarante, ingressando oficialmente na bancada do chicote, liderada pelo colega Reditário Cassol.


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-O coletivismo é a negação da liberdade, porquanto a sede da liberdade é o indivíduo. Tanto é que a pena mais severa na história da humanidade é a privação da liberdade. A essência da liberdade é una e indivisível e daí a designação do sujeito como "indivíduo".

Aluízio Amorim

Filósofa russa Ayn Rand :



“Quando você perceber que, para produzir, precisa obter a autorização de quem não produz nada; quando comprovar que o dinheiro flui para quem negocia não com bens, mas com favores; quando perceber que muitos ficam ricos pelo suborno e por influência, mais que pelo trabalho, e que as leis não nos protegem deles, mas, pelo contrário, são eles que estão protegidos de você; quando perceber que a corrupção é recompensada, e a honestidade se converte em auto-sacrifício; então poderá afirmar, sem temor de errar, que sua sociedade está condenada.”



Ayn Rand nasceu em São Petersburgo em 1905