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terça-feira, 1 de outubro de 2013

‘No tempo dos embargos infringentes’, por Luiz Werneck Vianna






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VEJA

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30/09/2013 às 20:28 \ Feira Livre

‘No tempo dos embargos infringentes’, por Luiz Werneck Vianna



  • Publicado no Estadão deste domingo


  • LUIZ WERNECK VIANNA


“Era no tempo do rei” ─ com essa frase mágica Manuel Antônio de Almeida inicia seu romance Memórias de um Sargento de Milícias, cativando prontamente o leitor para conhecer as desventuras do seu herói, Leonardo Pataca, e outros personagens típicos da vida popular das primeiras décadas do século 19, como milicianos, meirinhos, barbeiros, ciganos, mulheres de má vida. Toda uma galeria de homens comuns treinados nas artes de uma difícil sobrevivência sem perder o gosto pelas festas e pela convivência bem-humorada entre eles.



O motivo dessa alusão à obra tão celebrada não se prende, contudo, ao protagonista da narrativa, mas a uma simples coadjuvante, dona Maria, mulher de meia-idade, gorda, mas bem afeiçoada, compadecida dos pobres, a quem atendia com os recursos que lhe sobravam naquele meio de escassez, e que nutria uma paixão sem remédio pelas demandas judiciais. Movida por esse sentimento que dominava a sua vida, saía de uma demanda para entrar em outra, conhecedora de leis e de regulamentos, provavelmente dominando a dialética incerta dos esotéricos embargos infringentes, embora fosse certo ser versada nas Ordenações Manuelinas. Os processos e as demandas judiciais intermináveis animavam a sua vida, como hoje parecem dominar a nossa.

Com efeito, somente por peripécias do nosso código genético cultural pode ter aflorado, assim, de repente, a informação desse gosto pelas manhas e pelos jargões dos leguleios, típicos do decadentismo ibérico, que nos manteve, numa tarde de quarta-feira, aferrados à TV durante duas horas e meia ─ tempo bem mais longo que o de uma partida de futebol, com o qual folgamos ─ para ouvirmos as razões do decano do Supremo Tribunal Federal (STF) a fim de admitir os embargos infringentes reclamados pelos réus (da Ação Penal 470, conhecida como mensalão). A hermenêutica do decano cobriu leis atuais e de antanho, jurisprudências, regimentos, não lhe faltando revelar as motivações implícitas do que jazia oculto nas lacunas da manifestação da vontade do legislador, vazios desejados por ele ou meramente fortuitos ─ quem há de saber?

Dona Maria perdeu essa sessão do Desembargo do Paço, que lhe faria delícia, pois ali se reverenciava o objeto do seu culto, um processo interminável com vãos e desvãos, hirto em sua integridade de coisa em si, apartado do mundo, cerrado na sua lógica interna alheia aos profanos e manipulado por sacerdotes convictos dos seus atos litúrgicos. Deveras, dignos de admiração nossos vínculos com a Ibéria profunda, ainda presente nas nossas instituições e nas narrativas que nos chegam delas, tais como os que foram expostos pela TV diante de grande audiência, que não arredou pé e a tudo assistiu bestificada, no julgamento da admissibilidade dos embargos infringentes.

O público era o mesmo que há poucos meses, nas jornadas de junho, aderiu com entusiasmo, nas ruas, aos protestos da juventude em favor de direitos, de maior participação na vida pública e por transparência nas ações do Estado. Mas entre os dois episódios há um mundo a separá-los, quando de um dos lados das margens até se ouvem declarações, com dicção forte, de que não se devem considerar as vozes que ecoam do outro.

De fato, em matéria penal, o garantismo nos procedimentos judiciais, como se diz em jargão, protege a todos e se constitui num valor a ser defendido, com a óbvia ressalva de que ele não se pode prestar a formalismos e a chinesices que desservem à justiça e penalizam a sociedade. Sem ponderação razoável, esse meritório princípio pode tornar-se uma política de alto risco na administração da justiça.

Por outro lado, tenha-se presente que a Constituição que aí está, prestes a comemorar 25 anos de bons serviços ao país, foi concebida para ter uma natureza de obra aberta, admitindo sua filiação à corrente doutrinária do constitucionalismo democrático. Sob essa inspiração, recriou o nosso Direito e suas instituições no sentido de que fossem capazes de acolher a voz das ruas, quer no exercício do controle de constitucionalidade das leis, nas ações civis públicas, quer nos inúmeros conselhos que criou com o intuito de incorporar os cidadãos na gestão de matérias afetas ao interesse público.

Ao longo desse período de implementação, pela ação da jurisprudência e de doutrinadores, fomos deixando de lado práticas que nos vinham do cediço iberismo que forjou nosso Estado, em particular no Direito Administrativo, no qual dominava inconteste o princípio da discricionariedade do Poder Executivo. Sobretudo, afirmou-se nesses anos a primazia do paradigma do direito público, destronando antiga hegemonia do Código Civil. Na esteira desses novos processos, passamos a conhecer uma nítida convergência do nosso sistema de civil law com o de common law, que, aliás, transcorre em escala universal.

Doutrinadores influentes, como Luís Roberto Barroso, dedicam páginas simpáticas a políticas judiciais consequencialistas e à obra do notável filósofo do Direito Ronald Dworkin, que nos deixou recentemente e concebeu o Direito sob o modelo de integridade. Muito além de ouvir as ruas, às quais o hoje ministro Barroso é refratário, Dworkin recomendava, a fim de assegurar uma narrativa coerente e progressiva do Direito, que se ouvissem as vozes da história da sua comunidade, às quais o ministro também foi surdo, para que elas se fizessem presentes nas decisões judiciais, em particular nos casos difíceis – a Ação Penal 470 é um caso difícil.

O pleno do STF em sua composição original, ao julgar a Ação Penal 470, abriu com coragem o baú dos ossos da nossa História, remota e presente; a dos embargos infringentes nos devolve aos alfarrábios da dona Maria das páginas de Manuel Antônio de Almeida. Resta ver os próximos capítulos e como se comportam as ruas buliçosas do Leonardo Pataca.



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2 Comentários



erik - 

30/09/2013 às 22:59


Novo programa MAIS JUIZES

Devido ao longo tempo necessário para o judiciário julgar os casos de corrupção, por uma evidente falta de juízes, a presidenta poderia agir como fez com os médicos:
Contratar juízes estrangeiros , dispensando-os do exame de Ordem e do exame de admissão à Magistratura.

Seriam ótimos os juízes chineses, japoneses, árabes, que até cobram as balas para fuzilamento de condenados, cortam as mãos de ladrões, etc. E manda-los para as regiões mais carentes como Brasília, Maranhão, Alagoas, para avaliar os gastos da Copa, mensalões, dinheiro na cueca, verbas e demais desvios, dos quais Lula e Dilma nunca sabem de nada.

O que achas da idéia?




de Saa - 

30/09/2013 às 22:12


Dez com louvor para o texto.A maneira bem sacada com que anelou o antigo e o moderno,a fórmula que encontrou para nos relatar sobre a teia que o tempo passado criou e que enlaça nosso presente_a pesada presença de Ibéria,refletida no subconsciente dos atos soberanos de nossa Magistratura.L.W.Vianna, exerceu senso de contenção,ante a um assunto que nos dá vontade de gritar de pavor,a Ação Penal 470.



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“Quando você perceber que, para produzir, precisa obter a autorização de quem não produz nada; quando comprovar que o dinheiro flui para quem negocia não com bens, mas com favores; quando perceber que muitos ficam ricos pelo suborno e por influência, mais que pelo trabalho, e que as leis não nos protegem deles, mas, pelo contrário, são eles que estão protegidos de você; quando perceber que a corrupção é recompensada, e a honestidade se converte em auto-sacrifício; então poderá afirmar, sem temor de errar, que sua sociedade está condenada.”



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